A Desconexão e o Espelho

Como podemos compreender e identificar os padrões que nascem da ausência de vínculo

Não sei se já viveste, ou vives, uma relação assim.
Pode ter sido amorosa, familiar, profissional, ou até uma amizade.
Mas já reparaste como há relações que parecem tranquilas e estáveis, e, por dentro, existe um silêncio que pesa?
Como se algo essencial tivesse deixado de respirar.

Um dos lados continua presente, disponível, o outro, aos poucos, distancia-se, fecha-se, e parece já não querer compreender.
Não há brigas, apenas ausência. E isso, tantas vezes, dói mais do que o conflito.

Na verdade, ambos sofrem, mas de formas diferentes. Ambos procuram ligação, mas vêm de lugares distintos.
E nesse desencontro silencioso, já vivem desconectados.

Um lado aprendeu, talvez cedo demais, que sentir era perigoso, que a dor só se suportava se o coração ficasse em silêncio.
O outro lado aprendeu que, para ser amado, tinha de estar sempre disponível, de cuidar, compreender, adaptar-se.

E é assim que nasce um padrão tão comum, e ao mesmo tempo tão invisível: a desconexão e o espelho.

Quando o vínculo nasce da desconexão

Há pessoas que, sem se aperceberem, aprenderam a sobreviver desligando-se de si.
Talvez tenham crescido em ambientes frios, sem espaço para o sentir.
Talvez a perda de alguém querido, o abandono ou a negligência lhes tenham ensinado que era mais seguro não precisar de ninguém.

O corpo, sábio como é, protegeu-as. Fechou a sensibilidade, adormeceu o afeto e ergueu um muro que parecia segurança.

Mais tarde, já adultas, até desejam partilhar, mas algo nelas trava, como se o coração tivesse medo de abrir.
E para manter o controlo, constroem uma imagem de força, de autossuficiência, como se o poder sobre o outro pudesse garantir a proteção que lhes faltou.

Por fora, parecem seguras.
Por dentro, vivem com medo de depender, de se mostrar, de precisar.

Procuram o outro, mas não por verdadeira partilha: procuram espelho, alguém que as veja, valide e admire, sem tocar no que dói, sem desafiar o muro.

Não é arrogância, é defesa.
Não é frieza, é medo de vulnerabilidade.

Mas o resultado é sempre o mesmo: presença aparente, conexão ausente.
Há gesto, mas não há entrega. Há corpo, mas não há alma.

Quando tentam estar, algo nelas ainda se defende, porque o corpo continua a acreditar que sentir é perigoso.

O outro lado do espelho

E depois há quem se ligue a alguém assim.
Normalmente pessoas profundamente empáticas e sensíveis, com um coração que sente o que o outro não consegue sentir.

Querem ajudar. Querem abrir caminho. Não porque se sintam superiores, mas porque acreditam que o amor, a paciência e a compreensão podem curar.

E sem perceberem, entram numa dança desigual: oferecem mais do que recebem, escutam mais do que são escutadas,
e acabam por se esvaziar, devagar.

O corpo começa a avisar, cansaço, tensão, ansiedade, insónia.
A alma fica num estado de espera constante, como quem estende a mão e nunca é tocado de volta.

Não é drama.
É o corpo a gritar: “Assim, também eu estou a viver em desconexão.”

Porque sustentar o que não é recíproco é, lentamente, afastar-se de si.

O espelho que ambos carregam

O desconectado procura espelho para se sentir vivo.
O empático torna-se espelho para se sentir necessário.

São lados diferentes da mesma ferida: a ausência de vínculo interno, a dificuldade em estar consigo sem fugir ou se perder.

Um evita o sentir.
O outro confunde sentir com salvar.
Mas, no fundo, ambos têm fome da mesma coisa: presença.

E é aqui que o processo terapêutico encontra o seu espaço mais sagrado: onde há consciência sem culpa, e presença sem exigência.

É o lugar onde o corpo aprende que pode baixar a guarda e o coração, finalmente, respirar.

A transformação: reconectar-se consigo

A cura ou a transformação melhor dizendo, não acontece quando o outro muda.
Acontece quando deixamos de procurar o reflexo e começamos a olhar, com verdade, para dentro.

Para quem vive desligado, o desafio é reaprender a sentir em segurança, ensinar o corpo que já não está em perigo.

Para quem se perde no outro, o caminho é voltar ao próprio centro, descobrir que o amor não se mede pela entrega,
mas pela capacidade de permanecer inteiro mesmo em relação ou sem ela, se for um caso necessário.

A reconexão é um processo lento, mas possível.
Requer presença, consciência e corpo.
Requer desaprender o reflexo e aprender o encontro, com o outro e consigo mesmo

Quando isso acontece, qualquer relação, amorosa, familiar ou consigo mesmo deixa de ser campo de carência
e passa a ser espaço de verdade.

A Desconexão e o Espelho não fala de vítimas nem de culpados.
Fala de dois modos humanos de tentar sobreviver à dor da ausência. Ambos nasceram de histórias reais onde sentir era demasiado, onde o amor talvez não tenha sido seguro.

Mas hoje, com consciência e presença, é possível escolher diferente: deixar de procurar o reflexo e começar a habitar a própria presença.

Porque só quando regressamos a nós é que o encontro com o outro deixa de ser fuga e se transforma em vínculo.

Texto de Susana Amaral
Terapeuta Transpessoal & Professora de Mindfulness

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